domingo, 31 de agosto de 2014

Jet Lag

Maldito jet lag. Maldito por variadas razões. Primeiro porque é bastante desconfortável. Sinto-me com a cabeça debaixo de água, uma desorientação que me impede de saber a quantas estou e onde estou exatamente. As horas do claro e escuro não condizem com as horas do meu corpo. Nem as horas de sentir fome. 
Em segundo o jet lag, quando sentido na nossa casa, no regresso, significa que a viagem acabou. Fica o vazio, que nem as recordações o podem preencher em condições. Porque o vazio é corporal, é de presença, ou da falta dela. É o corpo que clama pela continuação da aventura mas neste momento encontra-se mergulhado no seu mundinho que já conhece e que acha desinteressante, comparado com todas as conquistas efetuadas nos últimos dias. 
Mesmo assim, reunindo-se á cabeça, faz com que eu dê uma passagem pelas fotografias tiradas, reviva alguns momentos, veja algumas coisas que comprei, poucas, que nunca fui muito de comprar em viagens. Há uma coisa que faço questão de trazer, sobretudo, claro está, quando vou para locais fora da Europa. Faço sempre questão de trazer uma peça de vestuário local. Isso e livros e, se os houver, dvds, sobre a cultura do país em questão. Desta vez trouxe uma camisa nepalesa para juntar á minha coleção. Pouco mais do que isso. Porque o que se traz das viagens, vem dentro de nós, agarrado á pele, e fica para sempre a pertencer-nos. Nas nossas vidas! Só que neste momento o meu corpo não percebe isso, queria mais. Quando se viaja da maneira como viajo é tudo vivido com muita intensidade, a todos os níveis. E quando se regressa acha-se tudo mais pequeno e com pouca demanda. 
 Sem grande coisa para fazer pus-me a fazer pequenas arrumações. Talvez queira arrumar de vez o jet lag num outro lugar que não em mim. Talvez me esteja a preparar. A preparar para continuar a grande viagem. Porque essa não parou. 
Embora esteja temporáriamente sendo sentida como monótona. Mas muito temporáriamente. 

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Deixar Lumbini, chegar a Kathmandu

Na viagem de volta impossível esquecer as vozes dos pequenos monges recitando as suas preces, em voz muito alta, vigorosa, com um prazer e uma urgência de seriedade de criança. 



Chegar ao hotel, o mesmo, ver as caras conhecidos, ser recebido como família, a roupa vinda da lavadaria com um cheiro de conforto. É tão bom. Sobretudo quando se está longe. Faz-nos sentir pertencer a algum lugar, encaixar, mesmo sem pertencer. Chegar a casa. Sem chegar. E será que alguma vez chegamos mesmo a casa, ou temos sensações e hábitos que nós fazem acreditar que sim. 
Como eu gostaria viver na máxima de Sócrates : "não sou ateniense  nem grego, mas sim um cidadão do mundo. E assim fazer de todos os sítios uma casa. Nem que os tijolos fossem apenas de hábitos e sensações. 

Chegar ao quarto, ao mesmo quarto, e deitar-me em cima da cama. Sem nada pensar. A ouvir a miscelânea dos ruídos lá de fora. Miúdos brincando, recitações das ppresses de fim de dia, vozes falando numa língua familiar mas não compreendida, o trânsito ao longe, os pássaros. Numa sinfonia. Apenas a respirar. Suavemente. Casa.
Para daí a pouco já estar na inquietação de partir. 
O "gate of Lumbini". Prestes a passá-lo, rumo a Kathmandu. 
No caminho, é impossível ficar indiferente á paisagem natural.

O loca do nascimento de Buda

Há cerca de dois mil e quinhentos anos atrás nascia um príncipe, de seu nome Sidhartha. A rainha sua mãe, quando o tempo de gestação estava a chegar ao final, empreendeu uma viagem para ir ter  o bébé, a casa do seu pai, como era costume na época. A faustosa caravana atravessou a floresta, e no meio dela, a rainha sentiu que o momento chegara. Diz-se que as árvores se curvaram para a rainha, ajudada pelas suas aias, se puder apoiar para ter a criança, que nasceu sem causar nenhum esforço ou dor á sua mãe. Esta criança mais tarde iria ser conhecido por Buda, que quer dizer, o desperto, o iluminado. Lembro-me o impacto que teve a primeira vez que li sobre a sua vida, no belíssimo livro de Herman Hesse, "Sidhartha", que recomendo vivamente.
O local exato desse acontecimento, do nascimento, estava á minha frente envolto numa calma e numa paz impressionante. 
Só o tinha visto no dia a seguir á minha chegada ao mosteiro pois, embora muitíssimo perto do local, optamos por desfrutar do fantástico final de tarde na companhia dos pequenos monges e dos seus sorrisos. O jantar foi servido ás sete. Estava delicioso! Comemos ás escuras pois a eletricidade é um bem que nem sempre existe. Além da electricidade, telemóvel nem pensar funcionar. Internet muito menos! A minha cabeça ocidental, sempre a mil, sentiu-se por momentos ameaçada. As coisas que normalmente não dispensava, não estavam ao seu dispor. Senti uma ansiedade pequena a apoderar-se de mim e fiz o que tinha de fazer. Entrei no templo do "meu" mosteiro, sentei-me e meditei por alguns momentos. Em silêncio. 
De facto, tenho aprendido tanto nas minha viagens, mas o que mais retiro delas, é que aquilo que nos aprisiona são os nossos hábitos, que construímos ao longo do quotidiano das nossas vidas. Eu não precisava de nada naquele momento da noite para o apreciar. Tinha tudo. 
Estas faltas dos habituais são o que me desafiam nas viagens. É aquilo que aprendo, quase como se fizesse uma experiência científica: desafiar reacções novas, em condições diferentes, para aprender novos comportamentos. Para aprender a vida. Para viver. E naquela noite tinha tudo isso. Esperançosamente as diferenças experimentadas far-me-ão um homem diferente. Lá fora o mosteiro só para mim, com imensos risos dos pequenos monges. O céu estava tão estrelado! 
E então de manhã cedo, fui direito ao local que se encontrava á minha frente. Entrei no edifício, todo branco. Lá dentro o local exacto do nascimento de um dos homens importantes na mudança do nosso velho mundo. 
Não consegui resistir à paz do local e passei aí largas horas, andando, respirando, estando presente, meditando, pensando na vida. Vivendo.
Era extraordinário observar as pessoas à volta. Todas pareciam estar bem. Todas se cumprimentavam com um sorriso. Sobretudo de ocidentais para ocidentais. 
Não se pense que o local era faustoso ou qualquer coisa do género. Li relatos de vários viajantes que ficaram desiludidos com o sítio. Pois eu gostei. Muito. Simples, mas a atmosfera à sua volta era grandiosa. 
Uma curiosidade: não existiam nenhuns vendedores. De nada. Apenas o bilhete, que custava cerca de dois euros se podia comprar. Pessoas a pedir também não havia. Isto num lugar no Nepal, a pouquíssimos quilometros da fronteira da Índia, é obra.
O calor das monções era abrasador, mas debaixo das copas das grande árvores corria uma aragem que me conciliava com a vida. 
Ao longe o som dos cânticos de um grupo de peregrinos do Sri-Lanka tornava tudo muito mais solene. E bonito. 

O local do nascimento. Lá dentro, não são permitidas fotografias, por entre ruínas posteriores ao acontecimento, uma pedra assinalava-o.
Paz sob as árvores.



segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Viver num mosteiro

ESTE TEXTO JÁ TEM TRÊS DIAS, POIS NO LOCAL INTERNET NÃO HAVIA E ELETRICIDADE SÓ DE VEZ EM QUANDO

São 17.45, hora local, e nos próximos dias vou viver num mosteiro. 
Tudo começou com uma mensagem , quase vinte e quatro horas antes, dizendo: "amanhã passo pelo hotel ás nove da manhã. Vamos viajar até Lumbini.Sangpo". 
Estava eu num café, com laivos ocidentais, quando a recebi. De imediato a minha cabeça começou a fazer contas ao que tinha de preparar. Parecendo que não ia andar mais de trezentos quilômetros em estradas Nepalesas, o que transforma essa quilometragem num caminho muito mais comprido. Eu sei,  pois já havia o havia feito noutras viagens, quer de carro, quer de autocarro. É muito engraçado observar como a nossa mente, num repente, muda todo o seu foco, por um simples acontecimento. Antes da mensagem os meus pensamentos vagueavam por outras paragens, mas assim que a recebi, dispararam noutra direção e multiplicaram-se em preocupação e antecipações. 
Bom, com tudo resolvido estava na pequena recepção do meu hotel á espera de Sangpo. Uma preocupação, outra, assaltou-me de repente: será que está viagem envolvia motas? Sorri, não muito descansado.
Um pouco depois apareceu Sangpo, eu despedi-me, num até breve ao recepcionista do meu hotel. Uns dias depois iria voltar, aliás parte das minhas coisas ficariam lá guardadas para não me deslocar com muitas coisas. Pack light, sempre em palavra de ordem.
Entrámos num carro,  bastante moderno para o habitual, com um condutor, e lá partimos os três para Lumbini.
Tenho de vos dizer o porquê deste destino. Lumbini é o local onde nasceu Buda, há uns 2500 anos atrás, sensivelmente quinhentos anos antes de Jesus. Eu tinha manifestado vontade de conhecer aquele lugar por isso o meu amigo arranjou tudo. Depois de sairmos de Kathmandu, enfrentado um trânsito descumunal, acompanhado de um calor das monções, começámos o caminho pelo Nepal mais profundo. Passámos por terras, terrinhas, estudantes de uniformes iguais, mulheres trajadas de cores vivas, homens sentados na beira da estrada, gente, muita gente, carros, camionetas. Andámos por estradas melhores do que o possível, outras quase intransitáveis, passamos por rios, subimos montanhas, descemos a pique, até atravessámos a selva, daquelas com animais selvagens. Perguntei quais, a resposta que obtive foi: muitos elefantes, mas também rinocerontes, tigres e veados. Não vi nenhum. 
Eu que não gosto de ar condicionado, bem disse o carro por este o ter. 
Sangpo ia-me informando das coisas conforme havia necessidade. Eu já me tinha habituado a não perguntar. Em vez disso deixar as coisas correrem. Aventura era aventura. Parámos para comer qualquer coisa no meio da selva, num restaurante que de casa apenas tinha o teto. 
-"É melhor comeres qualquer coisa pois ainda temos muito caminho para fazer"- disse-me. A minha cabeça ocidental ficou apreensiva. Tinham passado mais ou menos cinco horas, e ele dizia-me que ainda tínhamos "muito caminho"! Mudei o registo para nepalês e bebi uma coca cola fresca, que apesar de não gostar, sempre era melhor tolerada pelos meus intestinos, que esses, não sabiam ainda mudar de idioma e desde o dia anterior não andavam muito bem dispostos. 
Entrámos para o carro, andamos mais, muito mais. De repente a paisagem começou a mudar. Via agora através da minha janela campos de arroz, verdes, com muita água. O ar parece que ficava cada vez mais leve e puro. A luz do entardecer nepalês estava fascinante. Nem uma nuvem no céu!
Chegámos a Lumbini, e entramos para uma estrada de terra batida, continuámos em frente. Sempre em frente. Chegámos aos portões de um grande mosteiro. 
O meu monge disse-me que era ali que íamos ficar.
-"Better than hotel"- disse-me com o seu sorriso. 
No mosteiro vivem cerca de 35 monges crianças que aí estudam. Bebemos uma bebida fresca todos juntos e rimos. A felicidade deles era contagiante.
Depois fui conduzido ao meu quarto. Um quarto simples, muito limpo. Sentei-me, olhei pela janela e de repente senti-me com uma fortuna imensa. Peguei no meu caderninho e escrevi umas palavras onde não cabia o meu contentamento:
São 17.45, hora local, e nos próximos dias vou viver num mosteiro.


O caminho até chegar ao mosteiro. Em Lumbibi.
A vista do meu quarto, dentro do mosteiro, para o templo. 

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

As grutas sagradas

Ás 19.30 recebi uma mensagem do meu amigo monge Sangpo. Dizia: "Hello, tomarrow 7:30 at Shechen guest house for breakfast"...
Levantei-me cedo é fui tomar o pequeno almoço com ele. Íamos visitar um lugar bastante especial, a caverna onde Guru Rimpoché meditou durante bastante tempo. Guru Rimpoché é um santo bastante reverenciado, visto como um segundo Buda, responsável pela introdução do budismo no Tibete, a convite do rei Trisong Detsen. É dito que o seu aparecimento foi profetizado pelo Buda.
Assim, lá íamos nós ver a caverna onde este personagem histórico meditou antes de ter ido para o Tibete. 
Quando nos levantámos da mesa do pequeno almoço para partirmos, notei a presença de um objecto que me provocava alguma ansiedade: o capacete da mota! Fomos de mota. Só que desta vez, não era um passeio pequeno. O local onde íamos ficava a mais de uma hora de caminho. Por isso atravessámos Kathmandu, no meio de um intenso transito. Confesso que desta vez não estava a achar muita piada. O desporto radical que me provocara risos, dava agora lugar a uma sensação de inconsciência. Aquele trânsito todo e um pendura sem capacete: é um perigo desnecessário e nada de se gabar. Mas o que é certo é que em qualquer mota ( e se eram muitas!) não havia nunca nenhum segundo passageiro com capacete. Só o condutor. Dá ideia que só é obrigatório para o condutor. Por isso como em Roma sê romano, eu decidi ser nepalês no Nepal. E segui, confiante na boa condução do monge, e nas bênçãos do local sagrado para onde nos dirigíamos. Bom, tentei não pensar muito que estava em cima do velocípede. Quase como pensar nas minhas coisas favoritas, como os miúdos da música no coração cantavam. Chegamos ao dito lugar, que ficava no meio das montanhas. Sãos e salvos. O ar fresco, o cheiro da natureza, só por si eram uma benção. Sangpo disse-me que aquele era um dia especial no calendário, justificando-se assim o número de pessoas que prestavam as suas homenagens ao lugar sagrado. Ele parecia conhecê-los a quase todos. Até um dos monges que estava lá em retiro era seu primo. Depois de subirmos as inúmeras escadas até á caverna, conversamos um pouco com o primo, ou melhor, conversaram eles pois eu nada entendia o seu idioma. Mas a simpatia irradiava e isso era o bastante. Acompanhava tudo com um sorriso. 
Após um convite do primo, Sangpo perguntou-me se queria almoçar com os monges no mosteiro. Assim fizemos.
Confesso que não comi muito, com medo que o meu organismo europeu me pregasse alguma partida. Mas comi o necessário, evitando os crus, saladas ou alguma coisa que não sabia o que era. O que comi estava delicioso, , muito bem condimentado. 
O resto da jornada, para um budista como eu, foi o silêncio, a meditação, o estar presente naquele sítio, querendo ser sempre mais cientista desta coisa a que se convencionou chamar vida. 
Visitámos ainda outra caverna onde, segundo o meu amigo contou, se deu o encontro entre o Guru Rimpoché e um ministro do Tibete quando este lhe formalizou o pedido para ele ir ensinar àquele país. Depois descemos a montanha de mota, entramos na confusão de Kathmandu, com um á vontade da minha parte que me começava a preocupar. Parece que toda a vida tinha feito aquilo. Sem receios!
Sangpo deixou-me no hotel e sorri-lhe agradecido na despedida. Ele devolveu o seu sorriso, bastante rasgado. Disse-me: "vai olhando para as mensagens, que um destes próximos dias vamos dar um grande passeio. Não é amanhã!"
E com esta incerteza meio certa, continuando sempre a sorrir, pôs o capacete e partiu na sua mota. 
Amanhã não era. Pelo menos sabia disso. Mas pouco mais. De facto, para quê saber mais. Nada na vida é certo, nem controlável. A seu tempo, logo se vê. 
A gruta onde Guru Rimpoché meditou. Na entrada pode ver-se uma mão gravada na pedra, atribuída ao Rimpoché. De facto a história da sua vida, escrita pela sua esposa, é cheia de feitos extraordinários.
No almoço com o meu amigo Sangpo, á direita. No meio uma monja, que neste dia fazia o seu aniversário.
Na próxima foto o local da "reunião" entre Guru Rimpoché e o ministro tibetano. Sangpo contou-me que diz a lenda que o Rimpoché aceitou mas disse ao ministro para ir andando á sua frente. Quando o ministro chegou ao Tibete, Guru Rimpoché já lá estava. Começava assim uma série de feitos extraordinários de Guru Rimpoché no país

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Mosteiro

Ontem fui a um mosteiro bastante importante para mim, uma vez que está ligado aos meus mestres Tibetanos , que tiveram a grande simpatia de acolherem Portugal nos seus destinos, para aí ensinarem de tempos a tempos. Para chegar até lá, as mesmas aventuras rotineiras de sempre: discutir o preço do taxi, o condutor não saber o caminho, o trânsito intenso, etc. O normal por estas bandas. Pelo menos não ia de mota, pensei. E ri-me sózinho recordando a aventura do dia anterior.
Depois de algumas peripécias, de termos ido para outro mosteiro, estradas de lama, algumas marcha-atrás perigosas,  lá chegámos ao pretendido. Apenas um senão: o enorme portão ( mas quando digo enorme é ENORME) estava fechado. Numa porta mais pequena ao lado, havia uma espécie de campaínha. Porém estava partida. Ali estava eu, á frente de um portão enorme,  a bater com alguma força, a tentar,  com todos os meus quereres, entrar. Tenho de acrescentar que, do portão até ao interior do mosteiro, ainda havia uma distância considerável. E como tudo isto se passava no topo de uma montanha, a distância parecia aumentar. De vez em quando era ajudado pelo meu motorista de taxi que ia dando umas buzinadelas, ao portão. A imagem que tenho de mim é a de um desenho animado, muito pequenino, de um conto qualquer das mil e uma noites, á entrada da porta de um grande palácio, mas como plebeu, não o deixavam entrar. Passados uns momentos, conformei-me que a viagem tinha sido em vão e comecei a entrar no taxi. Nisto, juro-vos, pareceu-me ver a silhueta de um homem, por detrás das frinchas do portão, a descer a rua. Saí do taxi, chamei-o ansiosamente. Ele sempre calmo, cumprimentou-me, perguntou-me de onde vinha. Quando lhe falei nos mestres que costumam ir a Portugal, o sorriso tornou-se maior e apenas disse um simples "por favor, entra!". Assim o fiz, despedindo-me do taxista. O portão voltou a fechar. Eu estava no mosteiro. A partir daqui tenho de assumir o meu falhanço em contar o que quer que seja, pois tudo ficou para além das palavras. Apenas digo que passei parte do dia em recolhimento silencioso, em retiro. Em meditação. Lá em baixo Kathmandu parecia distante, muito pequenino. Cá em cima o ar estava fresco. E o silêncio... o silêncio era maior do que dez portões de cinquenta mosteiros em cima de cem altas montanhas. O silêncio poderia muito bem morar num qualquer conto de mil e uma noites. Ao fim da tarde desci da montanha, apanhei um autocarro, regressei a Kathmandu. Mas á noite eu ainda trazia a montanha dentro de mim, ainda estava no mosteiro, ainda tinha comigo o atravessar do grande portão.  Ainda tinha o silêncio. E não tinha sido nenhum conto de mil e uma noites. De vez em quando esta viagem grande que é a vida, leva-nos para outros lugares que não contamos. Por vezes até  altera a geografia dos mapas que julgamos conhecer no interior de nós mesmos. E noutras vezes até achamos que contos de mil e uma noites e outros afins, são uma realidade tão real como a que conhecemos. 
Ao passear pela noite senti-me bem. Talvez seja isto a que chamam paz.

domingo, 17 de agosto de 2014

Desportos radicais


Deixem-me falar-lhes do Sangpo. Uns dias antes de partir de Portugal, um grande amigo, o Fernando Santos, telefonou-me dizendo que a pessoa certa para eu contactar, era um monge que já tinha viajado com ele, e conhecia muito bem toda a região. E assim, graças ás tecnologias desta era, combinei encontrar-me com ele no meu hotel em Boudhanath. Apareceu-me um monge cheio de simpatia, de sorriso afável e vestido a preceito. Falamos um bocado, sobretudo sobre as viagens dentro da viagem a realizar, e combinamos encontrar-nos no dia seguinte para irmos á embaixada da Índia, pois um dos sítios que pretendia visitar ficava já fora do Nepal. E assim aconteceu, no dia seguinte, muito cedo, após o pequeno almoço, Sangpo foi buscar-me. Perguntei- lhe como íamos. Respondeu seguro:  - "De mota"
Pensei que fossem os famosos tuk tuk ou coisa no gênero, mas qual não é o meu espanto quando o vejo agarrar num capacete e subir para uma mota! Convidou-me a subir também. Eu, petrificado ainda perguntei pelo meu capacete. 
-"No need"- foi a resposta que obtive, com um sorriso. 
Em menos de nada, de sequer ter tempo para sentir qualquer coisa parecida com medo, dei comigo em cima de uma mota, sem capacete e com um monge na condução. Toda a gente faz uma ideia do caótico que é o trânsito para estes lados. Se me dissessem que isto me iria um dia acontecer, diria que era impossível. Mentira! Ali estava eu no meio do trânsito maluco. Pior! É que só tinha vontade de rir. Acho que o meu corpo achava-se numa qualquer experiência radical. 
Na embaixada disseram-nos que, por causa das comemorações da independência da Índia, não havia visto para ninguém. A emocionante viagem de mota tinha sido em vão. Ou não! Tenho mais um "chek" na minha lista de coisas por fazer ( lista essa, que por acaso não possuo): andei de mota, á pendura, no centro de Kathmandu. 
De Sangpo, que a propósito, é um excelente condutor, vamos ouvir mais histórias. De certeza. Uma vez que ele vai ser uma espécie de guia numa parte da minha viagem. Não de mota, claro! 
Apesar da adrenalina ainda consegui tirar uma fotografia, numa parte do caminho, onde o trânsito estava mais calmo. 
A poluição é muita. Felizmente tinha comprado uma máscara no dia anterior. Capacete não há mas de resto temos tudo.